Apresentação: Como se faz uma tese em sociologia da educação?

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Bruno Dionísio, Leonor Lima Torres, Mariana Gaio Alves

Coordenação

 

«Uma tese é um trabalho dactilografado, de grandeza média, variável entre as cem e as quatrocentas páginas, em que o estudante trata um problema respeitante à área de estudos em que se quer formar». Estas são as palavras com que Umberto Eco, há precisamente quarenta anos, introduzia o tema do seu livro Como si fa una Tesi di Laurea, o qual continua incrivelmente a figurar destacado nos escaparates das nossas livrarias no início de cada ano letivo. O título deste convite à apresentação de textos para o «simpósio» do nº 1 do Jornal de Sociologia da Educação é uma revisitação desse título clássico. Mas o foco é bem diferente daquele que lhe fora dado pelo autor de O pêndulo de Foucault.

O que chega até nós, das cerimónias de apresentação pública aos trabalhos alojadas em repositórios académicos, não espelha a sinuosidade dos trilhos de que uma tese é feita. Esmiuçar os meandros da produção (artesanal) do conhecimento conduz-nos a uma viagem por dimensões que são próprias do campo da sociologia da educação e outras que são transversais às várias áreas do saber. Além disso, embora existam formas académicas que perduram, os tempos recentes introduziram novas nuances que interferem na confeção de uma tese.

Aos públicos que tradicionalmente procuravam pós-graduações, mestrados e doutoramentos, outros com novas caraterísticas e outras motivações se lhes juntaram. A figura do estudante internacional, cada vez mais presente nas universidades portuguesas, é disso um exemplo paradigmático. Por sua vez, às carreiras lineares entre graduação e pós-graduação acrescentam-se percursos não lineares entre academia, mundo profissional, regresso à academia; percursos invertidos em que a entrada precoce no mundo profissional ou a vivência de situações de desemprego estimulam o ingresso (tardio) na academia; ou ainda percursos em que o regresso para estudar na academia coexiste com o desenvolvimento de atividade profissional. Em muitos casos, a área de pós-graduação escolhida nem sempre apresenta afinidades com a formação inicial.

O quadro organizacional das instituições de ensino superior, não obstante as especificidades locais, tem também sofrido reconfigurações mais vastas que interferem na maneira como uma tese é feita. À tradicional tese individual se juntam novas modalidades como é o caso das teses inseridas em projetos de equipa, com ou sem financiamento, teses por compilação de um conjunto relevante de trabalhos de investigação já publicados em revistas científicas de reconhecido mérito, e teses em programas de pós-graduação enquadrados em redes nacionais ou internacionais. Também o imperativo da eficácia parece tornar-se mais premente, seja por razões financeiras (o custo da formação, os prazos dos projetos financiados, a duração das bolsas,…) seja por razões institucionais, internas e externas (a avaliação externa realizada no âmbito da A3ES, a avaliação dos programas aferida pelas taxas de conclusão de teses, a avaliação do desempenho docente medida pela capacidade de levar até ao fim o maior número de orientações, …).

A ética, na construção de uma tese e na relação de orientação, é outro problema para o qual a comunidade académica desperta cada vez mais. Os mecanismos de acesso (digital) à informação, as condições de trabalho de campo apertadas pelas garantias jurídicas da proteção de dados, as fronteiras – ténues ou flagrantes – entre originalidade, paráfrase, plágio e fraude, as controvérsias acerca dos direitos autorais do trabalho (exclusivos dos orientandos ou partilhados com orientadores?) são alguns desafios éticos que interferem na elaboração de uma tese.

A relação de orientação é outra dimensão sensível. Qual o barómetro de uma «boa orientação» e de uma relação bem temperada entre orientadores e orientandos? As teses fazem-se de espaços de autonomia e de liberdade criativa mas também de direções mais rígidas e tutelares; de laços entre orientadores e orientandos que se robustecem ou se deterioram; de relações sólidas ou fugazes; de rotinas reais ou de relações virtuais, no caso da orientação à distância; de um vai-e-vem em que, uns e outros, poderão experimentar estados que podem ir da genialidade à bestialidade, e vice-versa, à medida que as teses, e as relações entre orientadores e orientandos, se fazem, desfazem e refazem em climas mais ou menos inóspitos de turbulência emocional e relacional. Serão as «comunidades de aprendizagem» um antídoto ao trabalho (solitário) e um paliativo do sofrimento e do impacto que a realização de uma tese tem na saúde mental (como alguns estudos internacionais vêm demonstrando)?

Situando o debate no campo da sociologia da educação, o que motiva alguém a fazer hoje uma tese nesta área? Que pessoas procuram estudos pós-graduados em sociologia da educação e que agendas, enfoques, tendências (teóricas, metodológicas, de objetos e problemáticas) se estão afirmando ou abandonando no mundo dos interesses de pesquisa das novas gerações? Com que problemas e desafios nos deparamos hoje no processo de orientação e de fabricação das dissertações (de entre os que atrás se identificaram ou outros igualmente prementes)?

Interpelamos a comunidade de sociólogos da educação, seja a partir da experiência mais autobiográfica (como orientadores ou orientandos) seja a partir de posições institucionais que favoreçam uma visão mais panorâmica, para que contribuam com as suas reflexões sobre esta temática em que se procura, de alguma maneira, abrir a «caixa negra» da tese. Dessacralizando-a, ou desromantizando a «arte de fazer uma tese», este simpósio funciona assim como uma incubadora de ideias que contribuam para a reflexão sobre uma sociologia da educação a fazer-se e, portanto, sobre os interstícios da produção de conhecimento científico. E assim retomamos Umberto Eco e a imagem que nos deixa no final do seu livro de 1977: «a tese é como o porco, não se deita nada fora».